Libido e Mercadoria

Eliane Beê Boldrini é Graduada em Psicologia, Mestre e Doutora em Educação e  escreve quinzenalmente para Comcafé, sobre os temas de de seu conhecimento, começando por cuidados com a saúde, área na qual, a partir do viés da Psicologia, vem se especializando, sobretudo no campo da prevenção de doenças.

 

A fala recente de nosso presidente sobre turismo sexual estimulando os turistas estrangeiros para consumir a “mercadoria mulher” no país foi minha motivação para escrever esse artigo e continuarmos no caminho da psicanálise.

Para interpretarmos tal estímulo precisamos abordar sobre a teoria do desenvolvimento da libido, a energia sexual ou energia da vida. Segundo a psicanálise o ser humano para chegar à sexualidade adulta desde o nascimento passa por três fases, a saber: oral, anal e fálica. Essas fases não são rigidamente separadas e cada uma se relaciona com partes do corpo onde se concentra o prazer e com ele as fantasias.

Na fase oral, do nascimento até por volta de um ano e meio, o bebê tem como principal necessidade material a alimentação. Assim o prazer de satisfazer essa necessidade fica concentrado na boca e todo tubo digestivo, por esse motivo é cunhada de fase oral. E isso é fato notório, basta observar os bebês, eles experimentam o mundo principalmente com aboca. É a fase que colocam tudo na boca, pois a energia sexual, a energia da vida, está concentrada ali. Nessa fase, nosso passaporte para uma vida adulta equilibrada é a boa amamentação, nem pouco e nem muito, permeada de amor e equilíbrio no lar. Coisa difícil, não?

As fixações nessa fase, desejos não resolvidos, na vida adulta compensaremos a falta por outros prazeres que a sociedade oferece relacionados à boca como beber, fumar e falar bastante. Na sexualidade adulta as fantasias orais estão relacionadas ao olhar, fetiches em geral, e prazeres que envolvem a boca como o sexo oral. Nos filmes pornôs a fixação pelo seio que amamenta aparece no pênis que ejacula na boca. Na fase oral dependemos do outro para satisfazer nosso prazer, esse é um detalhe bem importante e que se diferencia da fases seguinte.

Na fase anal, dos 15 meses até por volta dos três anos, a libido se concentra no prazer de segurar e soltar os esfíncteres para controlar a urina e as fezes. Essa é a fase que ensinamos nossos filhos a saírem das fraldas e, sobretudo, a não brincarem com o produto do corpo: o nojento cocô! Qual família não passou pela experiência de ver o bebê todo lambuzado com as fezes, rindo de prazer e melecando tudo? Em geral a família reage muito mal e desde pequenos aprendemos que o produto de nosso corpo é sujo, feio e nojento e que devemos esconder.

Têm crianças que aprendem a segurar o esfíncter antes mesmo do cérebro estar maduro neurologicamente para tais comandos, o fazem pela contração dos músculos da pelve porque quem cuida da criança começa muito cedo a ensinar. Acreditem, essa experiência irá marcar a pessoa para o resto da vida, pois manterá sempre esses músculos contraído assim pedindo o livre trânsito da energia sexual orgástica na sexualidade adulta.

Nessa fase a criança não depende do outro para satisfazer seu desejo. Ela se satisfaz consigo mesma, o que lhe dá um enorme sentimento de poder e manipulação porque mobiliza a família quando faz xixi na roupa ou na cama ou brinca com suas fezes. É a fase mais narcisista do desenvolvimento de nossa libido. Coincide com o desenvolvimento motor de andar,conferindo mais autonomia a criança.

Na adultice compensaremos os prazeres reprimidos na infância nessa fase por outros como pintar, plantar, qualquer coisa que manipule com as mãos e também sintomas neuróticos como esconder, ser pão duro, acumular (a relação com o dinheiro está muito relacionada a esta fase), mentir e tudo que envolve manipulação. Ainda, a obsessão por limpeza, por exemplo, é um mecanismo de defesa reativo do ego porque a criança saiu muito cedo das fraldas ou foi muito repreendida no processo de aprendizagem para controle dos esfíncteres.Assim o desejo de manipular as fezes é realizado pela mania de limpeza (formação reativa, um mecanismo de defesa do Ego).Também poderíamos abordar sobre a relação entre a homossexualidade e a fixação na fase anal. Ou seja, a angustia que a relação entre alguém diferente (heterossexual) provoca em mim por causa do complexo de castração; conceito que abordaremos na próxima fase.

Por fim chegamos à fase fálica. Essa fase tem o falos como símbolo. Falos é tudo que representa um pênis ereto, que por sua vez representa o poder na sociedade e que tradicionalmente são espaços ocupados por homens, os detentores do órgão fálico, como ter riqueza, dirigir empresas, comandar a política, esportes radicais, força física etc. Esse poder é representado no imaginário cultural, ao menos nas sociedades onde prevalece a produção de mercadorias segundo as regras do capitalismo, como um falos, um símbolo do poder social.Mas para a criança o conteúdo dessa fase está relacionado com os órgãos masculino e feminino.

Por volta dos três aos cinco anos a criança já aprendeu a controlar os esfíncteres,comportamento que se torna condicionado e a libido se fixa em novas partes do corpo, agora nos órgãos sexuais. É quando a criança percebe a diferença anatômica dos órgãos sexuais entre os meninos e as meninas, entre o pai e a mãe. Ou seja, percebe que o pai tem o órgão e a mãe não tem. A criança não percebe como uma diferença, mas como uma falta. A menina sente que nasceu sem um órgão e o menino sente que ele pode perder seu órgão já que amenina não tem e surge então o complexo de castração devido à angústia de ter sido castrado(menina) ou de poder vir a ser castrado (menino).

Essa angustia leva a criança a uma regressão e fixação nas fases anteriores e só continuará o desenvolvimento de sua sexualidade se a fase for marcada por carinho, confiança e amor. Masse na família, pai ou mãe, a educação for muito rígida e repressora haverá alguma fixação da libido nas fases anteriores como negação ao complexo de castração, um mecanismo de defesa do ego. No próximo artigo abordaremos sobre a estrutura da mente na psicanálise dividida entre inconsciente e consciente e nessas porções entre ego, id e superego.

Sigmund Freud, pai da psicanálise, chamou essa fase de Complexo de Édipo, usando o mito Édipo Rei como ilustração. No início dessa fase, tanto o menino como a menina querem restaurar a relação amorosa e prazerosa da fase oral, portanto ambos querem ser unos novamente com a mãe, a portadora do seio maravilhoso que os amamentou. Mas encontram como competidores o pai ou o que seja que distrai a mãe dos filhos como o trabalho, o conhecimento, qualquer área do interesse da mãe. Enfim que evidencia aos filhos não serem todo o universo e objeto de desejos da mãe. Razão pela qual é muito importante a mãe não ser super protetora, pois facilitará a difícil renúncia que as crianças precisarão fazer nessa fase para avançarem no desenvolvimento da libido.

Então o menino e a menina se voltam para o outro, objeto de desejo da mãe: o pai e descobrem as diferenças anatômicas entre eles. A menina se sente castrada e o menino com medo de ser castrado porque irá competir com o pai pela mãe, sendo que o pai é mais forte e poderoso do que ele. A menina não entende porque o pai tem tanto interesse na mãe, esse ser incompleto e que a fez incompleta também. Assim ela começa a imitar a mãe para aprender a esconder sua castração e conquistar o outro, o objeto de desejos da mãe: o pai,com isso renunciando a mãe para mais tarde ter que renunciar ao pai também em troca dos meninos de sua idade ou das conquistas fálicas na sociedade que substituem o falos do pai para ter seu próprio órgão de poder, seu símbolo fálico. Esse mistério das mulheres(dissimulação de sua incompletude) tem sido cantado em prosa e verso na cultura e é a base dos jogos de sedução. Seduzir para ocultar o vazio, a falta, a castração seja por meio de maquiagem, enfeites, roupas ou outros fetiches.

Por sua vez, o menino tentará conquistar a mãe com seu pequeno objeto fálico comparado ao do pai. Também o menino deverá renunciar a essa conquista em troca das experiências fálicas que a sociedade oferece. O papel do pai amoroso que deposita confiança nos filhos será imprescindível para que essas renúncias aconteçam e sejam substituídas pelas compensações que a sociedade oferece.

Sem as renuncias que o menino e a menina precisam fazer a sexualidade adulta será marcada pela impotência orgástica (conceito raichiano – W. Raich), por uma constante insatisfação sexual na vida adulta e daí surge o mercado do turismo sexual onde a mulher é apresentada como mercadoria de consumo, mas não só.

O mercado sexual é imenso e muito lucrativo que vai desde a pornografia a infinitas mercadorias que prometem satisfazer os desejos reprimidos no inconsciente em cada fase do desenvolvimento de nossa libido como os cigarros e bebidas na fase oral; a compulsão em consumir qualquer porcaria para compensar as fixações na fase anal; e as mercadorias de status e poder que representam o símbolo fálico como carros, relógios e jóias caras, celulares sofisticados, roupas de grifes entre outros.

Entre a fase fálica e a adolescência, inicio da sexualidade adulta, existe um período de latência onde menino e menina atravessa de forma muito diferente, pois enquanto a renuncia de conquistar a mãe competindo com o pai para os meninos se dá por meio da identificação com seus iguais: os outros meninos; para a menina a renuncia de conquistar o pai competindo coma mãe é compensada pelo interesse nos outros meninos já que suas iguais também são castradas.

O período da latência é muito bem representado nas histórias em quadrinhos da Luluzinha. Essa personagem tem uma amiga, a Aninha e os meninos que fazem parte do Clube do Bolinha. Numa das histórias a Aninha fala para a Luluzinha que é louca para entrar no Clube do Bolinha e conhecer o mistério deles. Então a Luluzinha se fantasia de menino para entrar no Clube, os meninos sabem que é a Luluzinha e colocam ela a prova com tarefas muito difíceis,que nem eles mesmos fariam para entrar no Clube. A Luluzinha se esforça muito e vence todas as tarefas. Não resta outra alternativa aos meninos a não ser aceitar ela no Clube. É quando a Luluzinha descobre que não tem nenhum mistério entre os meninos e que o Clube do Bolinha é bem chato. A Luluzinha convence a Aninha a dar mais valor para o mundo das meninas sem sentir inveja dos meninos.

Qual a lição que tiramos dessa história? A menina-mulher não é um ser castrado e pode conquistar qualquer espaço fálico na sociedade, pois o falos não é um privilégio dos homens. E as mulheres estão fazendo isso, o que assusta homens inseguros que não resolveram os complexos ao longo do desenvolvimento da libido. Então a mulher é transformada em uma mercadoria para ser consumida e que pode satisfazer todas as fantasias sexuais reprimidas nas profundezas do inconsciente em cada fase mal elaborada ao longo do desenvolvimento da libido na infância.

Na propaganda da Embratur, de 1983, a mercadoria mulher é vendida para satisfazer essas fantasias sem culpa e nem remorso pois papai deixa; lembrando que a propaganda foi uma iniciativa do Estado brasileiro, uma autoridade fálica. Nela observamos uma mulher morena,sem ser negra, de biquini, pulseiras, colares, maquiada (símbolos do fetiche sexual) tomando suco no canudinho (um símbolo fálico sugerindo sexo oral). Imaginem, então, o efeito que tem quando o próprio Presidente estimula o turismo sexual para os pervertidos sexuais (adultos com fixações mal resolvidas no desenvolvimento da sexualidade na infância) a vir no Brasil fazer sexo com as mulheres? E mulheres no mundo da exploração sexual incluem meninas, ou seja, crianças.

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