Qual o Limite da Psicanálise na Educação?

Eliane Beê Boldrini é Graduada em Psicologia, Mestre e Doutora em Educação e colunista de Comcafé, sobre os temas de de seu conhecimento, começando por cuidados com a saúde, área na qual, a partir do viés da Psicologia, vem se especializando, sobretudo no campo da prevenção de doenças. 

Recebi uma mensagem pelo Whatsapp de minha amiga Leocimara, bióloga com mestrado em solos, me pedindo ajuda, quase um socorro, para compreender os limites da psicanálise na educação. Ela está cursando agora a licenciatura, pois na graduação de biologia optou apenas pelo bacharelado e, às voltas das teorias da psicologia da educação, minha amiga caiu no poço sem fundo da psicanálise.

Eu li a pergunta que me enviou, sinceramente, com pena dela. Para responder a uma pergunta dessas precisa conhecer muito bem os fundamentos da psicanálise. Comecei a gravar vários áudios explicando esses fundamentos para então pensar sobre quais seriam os limites da Psicanálise na Educação, considerando que esta abordagem teórico-metodológica não é da cognição como as abordagens do Piaget, por exemplo, ou Vygotsky (construção social da mente).  A psicanálise é uma abordagem teórico-metodológica do desenvolvimento da sexualidade ou libido (a energia da vida) e nessa perspectiva quais seriam seus limites na Educação? Eu mesma não sabia responder, a inspiração para tal resposta surgiu ao longo dos áudios.

Fiquei espantada com meu próprio raciocínio quando, num dos áudios, afirmei que “o amor e a confiança eram a base da civilização” uma vez que na dinâmica entre as estruturas de nossa personalidade, divididas entre inconsciente e consciente, para a criança conseguir introjetar em nível do inconsciente os valores culturais que lhes são repassados por meio da Educação (família, escola, igreja, mídias), chamados na psicanálise como Principio da Realidade, precisa renunciar muitos dos seus desejos de satisfação imediata condicionados pelo Princípio do Prazer. Com isso estou afirmando que o desenvolvimento da consciência é condicionado pelas esferas, nem sempre harmônicas entre si, de dois princípios, a saber: o do prazer e o da realidade.

Partiremos do princípio de que quando estamos dentro do útero temos todas as nossas necessidades satisfeitas: não sentimos fome, frio, cólicas ou qualquer desconforto e essa é a nossa referência de prazer. Ou seja, prazer é não sentir qualquer desconforto. Quando nascemos nos deparamos com a dura realidade por meio do sofrimento como o ar que entra ardendo em nossos pulmões quando respiramos pela primeira vez; o frio na sala de cirurgia; sermos esticados para medir e pesar quando estávamos encolhidos dentro do útero; mais tarde a fome, as cólicas, o desconforto das fraldas sujas, o barulho, as luzes enfim a lista é longa. Esse é o nosso primeiro contato com a realidade e não temos nenhuma noção do que seja o eu e o não eu, pois a criança leva normalmente três anos para construir a percepção de seu esquema corporal.

Qual a percepção que temos dessa realidade? De um lado, lá estamos nós bebês completamente dependentes de outras pessoas para nos manter vivos e satisfazer nossas necessidades de conforto como continuidade à experiência prazerosa da vida intra-uterina que trazemos de herança no nascimento. E, de outro, o mundo com todos os seus estímulos e um corpo em desenvolvimento do qual não temos nenhuma consciência do que é o eu (meu corpo) e o não eu (o mundo). Assim, a percepção que temos da realidade é que ela se divide entre tudo o que me dá conforto (Principio do Prazer), por exemplo: saciar a fome por meio da amamentação sou eu, onde o seio da mãe é percebido como um prolongamento de mim. E tudo o que me dá desconforto, como a sensação de fome, sinto como algo que não eu portanto o mundo. Assim eu sou o prazer e o mundo é um monstro terrível que vem me devorar, então eu choro pedindo socorro.

Mas como posso renunciar ao principio do prazer por essa realidade desprazerosa e dar continuidade a civilização? Pois sem essa renuncia não existe civilização. Imaginem só as pessoas vivendo pelo principio do prazer?

Eu renuncio porque com a experiência aprendo que o mesmo ser que me alimenta, cuida de mim e que eu pensava ser eu mesmo é o ser que também me deixa esperando com as sensações de desconforto que sentia como não eu ou como um monstro terrível a me ameaçar. O bebê, por volta dos seis meses, precisa fazer uma síntese entre o ser bom (o eu) e o ser mau (não eu) – Melanie Klein, escola inglesa da psicanálise, chama de seio bom e seio mau – que é muito dolorosa e será o protótipo de todas as nossas elaborações de luto pela vida, nossas renúncias e equilíbrio ao não dividir o mundo rigidamente entre mau e bom, entre Deus e o diabo, entre certo e errado que nos torna pessoas intolerantes e extremadas como na política de extrema direita ou de extrema esquerda ou fanáticos por alguma religião ou seita. Essa síntese, portanto, é fundamental para termos flexibilidade e podermos lidar de forma equilibrada com os conflitos e sofrimentos da existência.

Para termos esse equilíbrio, precisamos do amor de quem nos cuida e da rotina; sim da rotina! O amor será a recompensa por nossas renuncias e a rotina nos ensinará a confiar. Pois por meio da experiência aprendemos que a pessoa virá nos atender, então aprendemos a esperar e a lidar com o desconforto, uma vez que sabemos ser passageiro. Além do mais é tão boa a experiência amorosa da voz carinhosa, o olhar brilhante, o calor das mãos acariciando nosso corpo enquanto nos trocam e cuidam de nós que todo desconforto tem sua recompensa. Assim, para o bebê a rotina dos cuidados, de não o deixar muito tempo esperando e chorando, é imprescindível para construir a confiança e com ela a fé. A fé e não o fanatismo que é a expressão do desespero, da falta de confiança e fé.

Por meio dessa confiança, das experiências prazerosas com o amor de quem nos cuida, aprendemos a diferenciar o que somos nós e o que é o mundo e aprendemos a renunciar determinados prazeres em troca de outros que a realidade social nos permite como o controle esfincteriano, cujo prazer infantil de manusear o cocô, por exemplo, na vida adulta compensará por outras realizações de desejo socialmente aceitas como pintar, construir coisas, plantar, mexer com a terra, enfim experiências que em nível do inconsciente, para o bebê, se equipara aquele prazer que sentimos um dia brincando com o produto de nosso corpo e que tanto estardalhaço provoca na família.

Portanto a sociedade precisa oferecer opções saudáveis de compensações de desejos que reprimimos nas profundezas de nosso inconsciente pelo amor de quem nos cuida. Essas opções não podem apenas ser para quem tem dinheiro e pode pagar, mas também para os pobres e isto só é possível por meio de políticas publicas, pois sem elas num mundo desprazeroso o que resta é a barbárie. Para tal, a escola tem um papel fundamental, não apenas como um processo de transmissão e produção do conhecimento sistematizado, mas também da arte, das atividades físicas e relações de cooperação, tolerância e fraternidade, pois o ser humano é uma totalidade e o processo de ensino aprendizagem ocorre nesse espaço de totalidade. Significa dizer que não somos um cérebro ambulante onde a escola deve apenas nos passar o conhecimento sistematizado segundo as etapas do desenvolvimento de nossa cognição.

O espaço criativo e amoroso para o ensino e aprendizagem recria o clima e experiência do bebê na vida familiar e também oferece esse espaço para aquelas crianças que tiveram uma história difícil sem todo esse amor e conforto.  Um espaço não apenas para os alunos, mas também para os professores e toda equipe escolar a fim de que o amor e a confiança na instituição cumpram sua função pedagógica.

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